quinta-feira, 24 de março de 2011

a Menina e a Porta


Vem de menina essa minha atração e medo por portas. Das poucas imagens que tenho de minha infãncia uma das mais fortes é o dia em que tentei atravessar uma porta fechada. Foi nesse dia que percebi o limite entre o meu corpodesejo e o mundo. Foi nesse dia que aprendi na escola sobre ditongos e hiatos. Achei bonito saber que hiato é o encontro entre duas vogais na mesma palavra, mas da mesma maneira que não entendia o porquê que meu corpo não atravessava uma porta, não compreendia por que os hiatos eram separados na tal da separação sílabica.

Desde esse dia desconfio que há alguma coisa em comum entre portas, hiatos e amor. Sa -í -da é um hiato. Portas não.


Talvez não venha da porta o meu medo, mas do que pode estar por trás dela. Nenhuma porta deveria ter chave, pensava eu. Portas tem fechaduras. Fecha -dura. O trocadilho é infame, eu sei, como todo trocadilho. Infame também era a minha curiosidade por todo ruído que vinha de trás de uma porta cinza de madeira, de uma grande casa, aparentemente abandonada da rua em que eu morava com minha avó.


De vestido de menina e meias vermelhas, equilibrava-me na ponta dos pés por minutos.Minhas primeiras danças nasceram da vontade de ver o que se escondia de mim. Os olhos e ouvidos atentos a qualquer som que pudesse vir de dentro da casa abandonada. Eu espiava. Nunca nessa época tive a idéia de tentar abrir a porta. Nunca ninguém veio abri-la para mim. Nunca virei bailarina.


Como toda menina curiosa, cresci, e meu corpo adolescente, corpo mulher ganharam marcas. Meu primeiro hematoma, do dia que tentei atravessar a porta, desapareceu. Surgiram outros. Tive ao longo de meus anos vividos outras colisões. Alguns corpos com quem estive eram muito parecidos com as portas de minha infância. Impossivel atravessá-los. Impossível ver ou ouvir o que se passa por dentro.


Dificil separar no meio caótico de minhas lembranças o que eram pessoas e o que eram portas. Tudo está um pouco misturado, tamanhos e texturas.


Dessas imagens-lembranças a que eu recordo com frequência é a de um antigo programa de auditório que assistia junto com minha avó. Ela sempre se emocionava muito, e eu achava tudo aquilo de uma bizarrice gigante. O apresentador eu não lembro o nome, mas parecia um grande boneco de cera. E as pessoas que iam a esse programa eram sempre meio sujas e feias eu achava. Algumas aleijadas. E sempre pediam algo.


O Boneco de cera/apresentador ficava na frente de uma porta enorme, e fingia ouvir atentamente os pedidos das pessoas. Aquele suspense me irritava, queria que a tal porta se abrisse logo. Vovó as vezes chorava. A porta muitas vezes abria e lá estava o pedido da pessoa realizado. Vovó sempre dizia que o Boneco de cera tinha um coração muito bom. Mas muitas vezes, as pessoas voltavam pra casa sem o pedido realizado, a porta se abria e não havia nada dentro. Vi várias vezes alguns aleijadinhos irem embora sem cadeira-de-rodas, ou sem seus novos aparelhos ortopédicos.

Minha avó me dizia também que era preciso ter esperança, que um dia eles iriam ganhar o que precisavam. Eu, menina, curiosa, nunca entendi por que o Boneco de cera não avisava para as pessoas que elas nao iriam ganhar nada. Ficava com dó delas sairem de casa só para aparecerem na TV.


No fundo todos nós esperamos que alguma porta se abra dizia minha vó. E eu sem muito entender respondia: é que somos todos meio aleijados não é?


foto de Fritz Jr.

5 comentários:

  1. amei o texto. Tb tenho isso, atração por portas. Qdo vou a lugares novos sempre fico pensando nelas, olhando... ás vezes xeretando por uma porta entreaberta. Depois vou ler de novo. Este texto merece ser lido de novo, com novo fôlego! amei!

    ResponderExcluir
  2. Obrigado Ro!!! O Bachelard na Poetica do Espaço tambem fala sobre portas. Voce ja leu? BEijus

    ResponderExcluir
  3. otima ideia para um proximo texto! sera sobre janelas!!!

    ResponderExcluir
  4. Gostei muito! Especialmente "Alguns corpos com quem estive eram muito parecidos com as portas de minha infância"...
    A parte sobre o boneco de cera/apresentador ficou meio óbvia pq nos tira da poesia/relação com a porta... e nos transporta direto pro auditório dele ou pra frente da TV! Não sei se isso é ruim, certamente não. Mas me encantaria mais ficar à espreita da (s) porta (s)...

    Linda escrita!
    Parabéns!

    ResponderExcluir