quarta-feira, 30 de março de 2011

Balas, relogios e amor imperfeito.

Imagine dois relógios iguais, um ao lado do outro, marcando a mesma hora. Imagine agora um tapete feito de balas e exposto numa galeria de arte. Imagine que esse tapete tem o mesmo peso que a soma do peso real do artista +o peso do corpo de seu parceiro . 163 kg? 145? Imagine que você, público, você leitor, possa pegar uma bala se quiser e levar para sua casa. Imagine que esses 163kg possam desaparecer. Da mesma forma como as pessoas desaparecem, como um corpo desaparece, como um gesto desaparece Esses dois trabalhos chamam-se Perfect Lovers (o trabalho dos relogios) e Untitled 1 (da série chamada Placebo)e são do artista cubano Felix Gonzalez Torres.


Não pretendo fazer aqui uma análise sobre sua vida e obra. Apenas gostaria de comentar um dos seus trabalhos mais conhecidos e talvez fazer algumas conexões e/ou digressões a partir deles. Esse texto é apenas uma tentativa de tecer relações, a partir do que o trabalho de Félix me provoca e tentar pensar a busca e a im-possibilidade pela perfeiçao, seja ela no amor, na dor, no tempo, ou na dança.


Félix Gonzalez Torres foi um artista cubano, nascido em Guatemaro em 1957 e por complicações decorrentes da AIDS morreu em 1996 em Miami. Sua vida e sexualidade estão intimamente ligadas e presentes em sua obra, borrando assim espaços fronteiriços entre arte e vida. A perda e a ausencia de seu parceiro, que morreu seis anos antes dele se presentificaram em mais de um de seus trabalhos


Em Perfect Lovers, Gonzalez utiliza dois relógios (analógicos) como metáfora para falar de sincronicidade, perfeição e amor. Perfect lovers é um ready-made poético, que brinca também com a noção de tempo e morte. Perfect Lovers é talvez uma ironia que "diz"escancaradamente: Amor ou Amantes perfeitos não existem. Ou quem sabe ainda seja uma obra romântica e ingênua que relaciona tempos iguais, ritmos iguais à perfeiçao. Ou talvez não seja nada disso. O unico contato que tenho com essa obra é através do registro fotográfico. Se precisasse descrever friamente a obra diria que o que vejo são apenas dois relogios parados na mesma hora, e o título em português se traduz por Amantes Perfeitos. Bom, isso de fato, já contém uma potência metáforica enorme.



Porém o que me chama a atencão é que os relógios durante a exposição não permanecem parados, como vemos nos registros iconográficos. Os ponteiros que marcam as horas, minutos e segundos estão sincronizados. Seria isso Amantes perfeitos ? Há poucas semanas, em uma conversa com uma amiga fotógrafa, que também tem muita curiosidade e admiração pelo trabalho de Félix, descobri que em uma das galerias na qual a obra estava exposta, houve um problema com as pilhas de um dos relógios, e obviamente eles começaram a marcar horários diferentes. O artista não teve muito como interferir, pois seria praticamente impossível que ele conseguisse ter o controle do gasto de energia das pilhas para que os ponteiros permanecessem em unissono durante todo o período de exposição. A probabilidade de relogios analógicos se desconectarem é bastante grande. (observem na foto acima que os segundos já estão um pouco decompassdos)

Dizem (tenho aqui que utilizar o "dizem",pois não tenho a referência exata da fala de Gonzales, nem da situação de erro com as pilhas) que a partir disso ele se questionou sobre seu conceito/desejo pela perfeição.

O erro alterou-o de alguma maneira e alterou tambem o próprio conceito da obra. O que me comove em Perfect Lovers e na arte é a idéia de que um trabalho pode mostrar coisas que nem sempre estão sobre o controle de quem cria. Que o ato de criar é esse lugar complexo de programação, acaso, tentativa, erro. Estar atento ao acaso ou ao erro pode ser uma forma de estar na vida, de lidar com nossas expectativas e frustrações diante o ato artistico. O desvio ou o acaso podem se incorporar na criação (vida).


A relação entre arte e sobrevivência, tão intrinsica no projeto estético de Gonzalez, é outra questão que também muito me instiga, , mas que talvez seja um tema para um proximo texto.


Essa semana tive a felicidade de ganhar de presente o livro Filosofia Cinza da filósofa Marcia Tiburi. Em um dos capitulos chamado A Arte a a Morte, a autora comenta um pouco sobre a obra A vida e morte de Regis Debray. Para Debray isso que chamos de estética tem a ver com algo bem prático que é a necessidade de sobreviver. Tiburi, na sua leitura sobre a tese de Debray afirma ser a estética uma estratégia de sobrevivência para nos mantermos na eternidade. Estética seria também uma forma de nos separarmos de nossa angustiante condição mortal, de putrefação.


Resumo rapidamente esse capítulo apenas para comentar duas perguntas que me ocorreram durante essa leitura. A dança, assim como a imagem, não seria também uma forma/estratégia de lidarmos com nossa condição precária de não eternidade? O "amor " tema/questão essa tão presente, escrita, pintada, representada, dançada, saturada, em diversas manifestações artisticas, não seria também uma maneira de lidarmos com horror da hipotese que é a inexistência de Perfect Lovers, ou Amores Eternos?


Dedico esse texto a Fernando de Proença que "entretantas" coisas, me ensinou que amar é qualquer coisa de (im)perfeito

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