"ASPAS"

O criador de nuvens - Augustho Ribeiro

"Ele ainda saía para ir comprar cigarros, e ainda chovia. Encolheu os ombros e abriu o guarda-chuiva. Observou a água escorrer entre as marquises e lavar sola de seus sapatos. Ainda a cada trago, ajeitava o casaco. Comprou o jornal e ainda viu alguns amigos. Escolheu um lugar entre a cidade, que pudesse ver a cidade inteira. Subiu a rua novamente. Sentou num banco qualquer, leu seu jornal e apreciou os cigarros que acabara de comprar.
Se pôs a pensar, filosofava sem nenhuma conclusão. Criava nuvens carregadas de palavras, para que um dia as chovessem na janela de alguem como uma serenata." Augustho Ribeiro





               Breve ensaio sobre genologia  literária
               ou: a escrita enquanto gesto
               ou: nada disso, tudo amor


Agora eu escrevo um conto. E sei que escrevo um conto sem n
enhuma clarividência do que é um conto. Por hora, penso que escrever um conto é como tirar uma fotografia. O conto tem uma maneira de ser. Uma maneira de ser que o difere do romance. O romance, que é como uma película, um longa-metragem. O romance, que é diferente do conto e da novela, porque a novela é como uma película breve, um curta-metragem. Eu escrevo um conto e o escrevo sabendo que o conto tem, em si, aquilo que o difere também do poema. Pois escrever um poema é como pintar uma tela, é como pintar uma tela em chiaroscuro, ou não. Escrever um poema é ter a liberdade de fazer, da matéria-realidade, uma matéria de sonho. É fazer da matéria-sonho uma matéria de realidade, ou não. Não. Eu escrevo um conto como se tirasse uma fotografia e como se pintasse, como se produzisse um curta-media-longa-metragem. Eu escrevo um conto com o compromisso apenas de escrevê-lo, com o compromisso apenas de realizar um gesto, este gesto vital que me dá sentidos, que nos traz o sema, que nos torna uno: o sêmem? Eu escrevo um conto porque tenho a in/consciência de que alguma coisa urge – alguma coisa, de desejo e mistério – alguma coisa que me impele a escrever e a dizer, do conto, o que o conto é, e não é: o que o conto pode ser. Eu escrevo um conto como se caminhasse por uma ruela escura tateando as pedras, tateando o sexo inexistente das paredes caiadas de determinadas casas com suas janelas abertas para o lado de fora, tateando as sebes de arcanos jardins, tateando o sonho, tateando corpos ou girando a chave num ferrolho para adentrar um recinto desconhecido de qualquer canto sem saída que me abrigue, que me proteja, que me permita gritar na intimidade sem luz de seu centro e sentir o visgo quente jorrando num lapso de sono e deleitamento. Eu escrevo um conto. E escrevo como se dançasse a música turva e inesperada de Penderecki, como se dançasse Le sacre du Printemps de Stravinski, como se dançasse as Danzas españolas de Isaac Albéniz, como se dançasse e cheirasse uma flor, como se dançasse e beijasse a tez de uma estátua de mármore, como se tocasse, leitor, o teu baixo-ventre e me inebriasse nesta zona tua para saber, de ti, teus calores intensos, teus calores mais ternos: eu escrevo um conto para sentir a tua maneira de contrair os músculos. Eu escrevo um conto, e este conto é um poema, este conto é um rabisco que só tem sentido porque existe um tu, este conto é uma maneira de dizer que escrever um conto ou um romance ou uma novela ou um poema ou este conto-nada - isto -, é também uma maneira de temer a morte: é também uma maneira de fazer amor.

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Maykson de Sousa
Breve ensaio sobre genologia literária
ou: a escrita enquanto gesto
ou: nada disso, tudo amor